A LUZ DO MUNDO

Uarlen Becker
3 min readDec 1, 2021

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Linda Montano and Tehching Hsieh performing Art / Life: One Year Performance 1983–1984

…e de repente eu senti aquele vazio sem sabor de tristeza, tanta tristeza.

O que esperar ainda, meu deus? Dentro de um ônibus barulhento e sujo. Salvador ardendo no segundo dia do verão escaldante. Dois poetas. Primeiro ele fez as apresentações e então anunciou a esposa. Era uma moça gorda com pernas finas bem juntinhas. Recitou timidamente seus versos e ao final justificou que tratava de um tema delicado: aborto. Porque ela era uma mulher pobre e o “sistema” queria controlar a vida, a natalidade deles, algo que era uma imposição divina não poderia interrompido por uma imposição humana. Disse que eles queriam controlar o crescimento deles, os negros. Era um casal de negros. Ele tomou a palavra, sorrindo por todos os cantos. Sorria principalmente pelos olhos quase fechados. Era um tímido cínico, a quem a vida deu a dose de cinismo para conseguia vencer de alguma maneira e não se entregar à morte. Faltavam-lhe metade dos dentes, o que não o impedia de sorrir e abrir bastante a boca ao falar. Então pensei nos meus entraves astrológicos com respeito à minha aparência. Ele disse que iria passar o “chapéu mágico”. Meti a mão na bolsa procurando moedas, eu tinha muitas. Peguei uma cédula. Coloquei no chapéu. Ela acreditava que os poderosos queriam sancionar uma lei permitindo a legalização do aborto para controlar a população de negros como ela. Que se fosse assim talvez nem tivesse nascido. E eu estaria ali agora sem a sua poesia. Quando eu, triste demais, pensava nisso, ela passou por mim e notei que era uma criança num corpanzil de pernas finas. Sua timidez era gigantesca e saltava aos olhos. Desceram e ele agradeceu ao motorista dizendo que o amava.

Um minuto depois subiu outro poeta. Esse com ares de revolta, mas uma revolta contida que me deu susto e vontade de chorar. Recitava seu poema assim: Tapava os dois ouvidos e gritava o primeiro verso, sempre gritado, ao passo que o segundo verso era sempre uma reposta ao primeiro, mas recitado baixinho. Ali sua revolta com a vida, com a pobreza, com o racismo, com a fome, com a vergonha e a humilhação de estar ali. No final pediu para passar o chapéu e quem não tivesse dinheiro poderia dar um sorriso ou aperto de mão. Ele passou colhendo algumas moedas, mas principalmente apertos de mão que ele mesmo pedia gentilmente, como se precisasse, e muito, daquele gesto, daquela migalha de afeto. Levantei-me aterrorizado com aquilo tudo. Pedi para descer, mas o ponto estava longe. O carro parecia que ia explodir com a minha angústia. Ele passou por mim e eu senti o meu vazio e o seu vazio e a sua dor e a sua tristeza e humilhação. Ou seria a minha tristeza e humilhação? Os passageiros que eram solicitados e levantavam a mão pareciam constrangidos. As viagens nunca são tranquilas. Pois a verdade entra e nos assalta. O rapaz, um negro de cabelos pintados de loiro e pés muito sujos sentou à minha frente no degrau do ônibus. Iríamos descer juntos. Olhei rapidamente pela janela: lá estava o dique do Tororó enfeitado com árvores e luzes do Natal.

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Uarlen Becker

Artista brasileiro, natural de Salvador, Bahia. Escritor de várias coisas, roteirista, diretor e ator de teatro. https://linktr.ee/uarlenbecker